A Justificação pela Fé





Há alguns anos uma sociedade ateísta divulgou um folheto em que descreveu a vida de personagens do Antigo Testamento nestes termos, com todos os seus pecados:

Abraão: prontificou-se a sacrificar a honra da sua esposa para salvar a sua vida.

Jacob: obteve os seus privilégios através da mentira e do engano. 

Moisés: cometeu um homicídio e depois fugiu à justiça.

David: adulterou e cometeu um homicídio.

Referiu que estas pessoas eram chamadas na Bíblia amigos íntimos de Deus e perguntou que tipo de Deus era este que gostava de pessoas assim. Naturalmente a sociedade ateísta baseava-se no princípio: "diz-me com quem andas e eu te direi quem és". Se Deus "andava" com homicidas, mentirosos e cobardes, vemos qual a conclusão que daqui se tira. 

O apóstolo Paulo também sentiu este dilema. Como é que Deus pode ser justo, santo e puro e aceitar homens pecadores (Rom.3:26)? Aqui a Igreja Católica, seguindo o princípio de Agostinho, reafirmado no Concílio de Trento (1545-63), afirma que Deus consegue ser justo e aceitar os homens pecadores porque os torna justos ou santos. Chama este processo justificação: atribui-o à graça de Deus e afirma que é recebida mediante a fé, assim coincidindo verbalmente com a posição reformada. De tal maneira foi notável esta coincidência verbal que no Colóquio de Regensberg, após a Reforma, o luterano Filipe Melanchthon e o contra-reformador católico Gaspar Contarini conseguiram formular um documento aceitável a ambos. Depois levaram o documento às suas respetivas igrejas e estas recusaram. Porquê? O facto é que biblicamente a palavra "justificar" não significa "tornar justo" mas sim "declarar justo". Aqui está o grande dilema até hoje não resolvido entre a Igreja Católica e as Protestantes. A Bíblia usa a palavra num contexto jurídico com o significado de "declarar livre de culpa" (Deut.25:1; Prov.17:15). Em Rom.3:4 Paulo cita Sal.51:4 que fala acerca da justificação de Deus - evidentemente não se trata de tornar Deus justo mas sim de O declarar justo! 
O núcleo essencial do evangelho é que Deus ofereceu Cristo como sacrifício para propiciar (aplacar a santa ira de) Sua própria pessoa (Rom.3:25). O homem não é salvo essencialmente por uma decisão sua mas sim por uma decisão de Deus. O nosso pecado, as ofensas diárias que cometemos em pensamento e ação, e o estado do nosso coração, tornam impossível qualquer aproximação de Deus. Nem sequer O buscamos enquanto estamos neste estado (Rom.3:11). Deus contempla o nosso pecado e contempla o sacrifício perfeito que é a morte do Seu Filho e declara que aceita este como pagamento por aquele. O Seu perdão é recebido mediante a fé que também é dom d’Ele. A fé é-nos imputada por justiça. Foi pela justiça de Cristo que lhes foi imputada que o cobarde Abraão, o mentiroso Jacob, os homicidas Moisés e David foram chamados amigos e íntimos colaboradores de Deus. A nossa justificação em nada difere da deles. A partir da nossa justificação somos também santificados. João Calvino declara que Cristo não justifica ninguém a quem ao mesmo tempo não santifique. A insistência de Tiago de que "a fé sem obras é morta" (2:20) em nada contradiz e de facto confirma a doutrina aqui defendida. A fé necessariamente produz vidas progressivamente transformadas e obras que glorificam a Deus. Mas a justificação em si nada tem a ver com a qualidade da nossa vida, nem das nossas obras.

O Concílio de Trento anatematizou a doutrina da justificação pela fé, independentemente das obras, porque entendeu que não podemos ser tornados justos (isto é, santos e puros) sem nos esforçarmos. E porque entendeu a "fé" não como confiança pessoal mas como assentimento mental. Desde esta perspetiva a fé dos evangélicos parece equivaler à mais pura passividade! Mas entendamos que está envolvido aqui um erro de base sobre o significado das palavras "justificação" e "fé".

O cristão evangélico, sendo declarado justo, sabe que é aceite por Deus. A sua salvação é garantida, não é apenas uma hipótese. O católico considera que está a ser "justificado" (tornado justo) aqui e continuará a sê-lo no Purgatório. Considera quase blasfémia a convicção do evangélico de que pode estar seguro da sua salvação eterna. O cristã

o evangélico está seguro porque no dia em que for chamado à presença de Deus não oferecerá como base para a sua aceitação as suas justiças, ainda manchadas pelo pecado, mas sim a declaração de justiça que lhe é dada em Cristo. Nas suas próprias mãos não levará nada: apontará simplesmente para a cruz de Cristo.

Neste ponto a nossa confiança difere radicalmente da do católico mais sincero. E a prática das nossas obras, expressão de gratidão a Deus, e não tentativa de obter o Seu favor ou acrescentar algo à nossa justificação, serão a garantia visível aos homens da autenticidade desta nossa confiança.


Alan Pallister
In “Fé Em Acção”
Dezembro 1985
 

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